terça-feira, 1 de abril de 2014
Ele e as Armas
Gostava de sonhar. E isso explica tudo. Explica os seus olhos meio lunáticos capturando a vida nos cantos mais improváveis, explica os lábios curvados num sorriso, um sorriso róseo, pregado no seu rosto moreno, radiante. Mas isso não o fazia bonito. O sorriso por vezes assustava, estava sempre lá mesmo no contexto mais sombrio. Na cabeça dele tudo era um sonho, ainda era noite, e ele vivia numa montanha longínqua, numa casinha pintada dum amarelo desbotado, com duas janelas simetricamente quadradas emoldurando a porta de entrada. Margaridas salpicavam a relva verde, um céu azul que se acizentava ao longe, anunciava a chuva. O Sol, uma mancha de tinta num amarelo vivo, deixado ali por um pincel de criança. Andava por ruas apinhadas, passava por calçadas sujas e húmidas de chuva, mas estava preso no seu próprio mundo imaginário, o mundo inexistente que, pensava ele, existia em algum lugar, talvez depois do horizonte. De hora em hora olhava pela janela, aspirava o ar poluído da cidade, imaginando-se numa ilha distante logo de manhãzinha, o ar frio e floral invadindo seus pulmões. (…) Era um louco, alucinado, atendia pela alcunha de estranho. E dalgum modo inacreditável, ainda assim era feliz. Era. Cansado. Tomara uma colher de sentimentos e agora eles martelavam nos seus ouvidos, gritando em voz alta. Os seus pés estavam cansados demais de seguir a carregar o peso da saudade, da mágoa nunca cicatrizada, dos toques que ainda ardiam na sua pele, noite e dia. Os seus pés, estavam cansados de perseguir os sonhos, devorados pelos outros. Sentia-se sonolento, mas não conseguia dormir. Sentado ali, sentiu. E não soube ao certo o quê. Um sentimento peculiar perdido dentro dele, um pássaro ansioso que fugiu da gaiola cedo demais. A nostalgia despontava novamente ali, ansiava por escapar e se fazer ouvir. O rapaz lutou bravamente, usou as armas do costume, até não poder mais. Respirou fundo o ar gelado, esperando que os sentimentos congelassem de uma vez por todas. Soltou sofregamente o ar poluído e saturado que havia dentro de si, poluído de emoções, encharcado da bebida forte que o embebedava e impregnava os poros da sua alma. Bebida para ele, venenosa. Um veneno doce, transformado num vicio, numa droga. Murmurou as mesmas palavras ilusórias de sempre, melodia suave para os seus ouvidos, para a sua cabeça confusa. Nenhuma das armas triunfou. E ambos esmoreceram sobre a cama, fartos, ele e as armas. A nostalgia tanto teimou, tanto cantou aqueles medos e receios, que acabou por deixar as lágrimas a dançarem pelo seu rosto. Tanto bailaram que caíram no chão frio, gelado. Escaparam em arquejos e soluços dos lábios trêmulos. (…) Agora tudo era silêncio. Só a respiração do pobre miúdo ecoava em cada canto da casa, um inspirar e um expirar calmo, tranquilo demais para toda a turbulência dentro dele, o desespero mudo. E o aroma das lembranças circulou no ar, o cheiro das recordações que perdera. Ele não sabia o que era aquilo, que fragrância seria aquela. Só sentiu. Um toque. Um abraço. Um beijo. O medo da partida, e o alivio da chegada. A despedida mais dura, o adeus. O calor de um olhar cansado, de uma imensidão nuns olhos negros como um túnel escuro. Um túnel sem saída, onde todos os sonhos ficam perdidos. Onde ficaram aqueles que foram, e não voltaram. O miúdo fecha os olhos, e as bailarinas voltam ao seu rosto encharcando as armas, fartas de jogar.
Subscrever:
Mensagens (Atom)